domingo, 4 de março de 2007

Sobre uma perda

Difícil. Desde de a primeira vez que a palavra 'câncer' saiu assustadoramente trêmula da minha boca. Eu não pensava que sentiria toda aquela fragilidade sendo uma pessoa racional e esclarecida, mas cada consoante, cada vogal, cada sílaba lutou antes que fosse completada. Eu não podia imaginar que seria assim.
Eu me lembro da última vez que a vi, já tão debilitada porém lúcida como sempre. Estava dormindo mas fiz questão me despedir, ela abriu os olhos, olhou pra mim e eu beijei a sua testa. Eu não sabia, eu não queria saber, só tinha medo de saber e não fazer a coisa certa, eu não sabia, mas, de alguma forma (e não era preciso ter grandes poderes místicos), eu sabia.
E quando vieram os fatos, carregava meu celular sempre comigo, e sabia que, se algo acontecesse, logo me contariam. Quando vi no identificador de chamadas, tive medo. E ele se confirmou.
Estranho pensar que não a verei mais. Fecho os olhos e vejo claramente o seu rosto, seu jeito de mexer as mãos, sua voz grave, seus comentários tão peculiares. Torna-me a mente sua imagem como a vi por anos a fio, sentada naquele canto especifico do sofá.
A dor é como um produto notável.
A primeira é a saudade precoce, a tristeza instantânea. Um pouco de conformismo pelo cessar de seu sofrimento.
O segundo fator é a tristeza estampada na face de todos a sua volta. Dói tão imensamente ver nossos amados a chorar.
Depois a perspectiva de um futuro para aqueles que mais conviviam com ela, como se tivessem de aprender tudo novamente pois não houve um só dia desde que me lembro por gente que ela não estivesse presente naquela casa, exceto em seus momentos finais. Como se elas devessem agora aprender a andar no escuro, como se tivessem mudado subitamente de moradia, de país.
Quarto e mais aterrador é sim o medo da morte. Não da minha própria morte, mas de ver, um a um, cada um dos meus entes mais amados e queridos, serem tirados de mim, já que ainda me assola a juventude e que a alguns já assola a velhice. Por enquanto não posso prever, uma triste suposição pela talvez 'ordem-natural-das-coisas'. Nessas horas lembramos dos sofrimentos que nos estão destinados, irremediavelmente destinados.
Novamente me recordo da cena. Ela se foi e eu fiquei, deixamo-nos de forma serena, estávamos em paz e orgulha-me isso. Eu entrei no quarto, caminhei uns dois passos até ela, deitada de olhos fechados na cama.
-Tchau, Tia Hilda. - Ela abriu os olhos, fixou-os em mim. E eu beijei a sua testa.


Tchau, Tia Hilda.